domingo, 17 de janeiro de 2021

Sim, estamos cheios de medo (outra vez) ... e ainda bem!

 Sim, estamos cheios de medo! De adoecer, de morrer, de perder pessoas rigorosamente imprescindíveis. De, sem querer, disseminarmos o mal. Sim, estamos cheios de medo! Da possibilidade das imagens trágicas de hospitais em rutura que nos chegaram de Itália, Espanha e tantas outras geografias se repetirem connosco. Sim, estamos cheios de medo! Da avalanche económica que todos já percebemos colossal. E estamos tristes. Pela vida mais ou menos suspensa por mil e um constrangimentos; pelos longos e penosos 10 meses sem tocar, cheirar, abraçar, beijar alguns dos que mais gostamos. Pior, porque muitos de nós, dramaticamente, já perderam pessoas preciosas. E estamos zangados, muito zangados! Um vírus, vindo do nada, virou-nos a vida do avesso e deu corpo a um batalhão de fantasmas! A realidade (dramática!) dos hospitais entra-nos casa adentro, e amplia mais e mais a intensidade do que vamos sentindo. 

  Por mais que muitos de nós nunca tenham tirado os pés do chão e a cabeça da consciência do perigo, o alívio nos números do mês de Dezembro, a viragem simbólica do ano (num registo mais ou menos mágico de que a pandemia era coisa do malfadado 2020) e a esperança (real!) na vacina que nos há de ajudar a vencer a pandemia, terão, porventura, alimentado a ideia de que o pior já tinha passado. Mas, com o ano novo, qual murro impiedoso no estômago, veio uma degradação assustadora da situação. E, com ela, a intensificação do medo, da tristeza e da raiva. E ainda bem! 
  O medo é protetor perante situações ameaçadoras. Será muito à boleia do medo (e do sentido comunitário) da rutura dos hospitais, do medo de adoecer, de morrer, de perder pessoas rigorosamente imprescindíveis e de, sem querer, disseminarmos o mal, que nos motivamos para cumprir escrupulosamente as indicações das Autoridades de Saúde. Será muito à conta da raiva que toda a situação inevitavelmente desperta, que vamos fazendo das tripas coração para dar vida à luta contra uma pandemia que insiste em dar corpo ao fantasma de morte. Será com a contribuição da tristeza (naquilo a que Melanie Klein chamou de posição depressiva) que podemos olhar para dentro, elaborar as perdas para, a partir daí, dar vida à luta pela vida! 

  Mas o medo, a raiva e a tristeza não podem atrapalhar? Podem! Muito! 
Quanto mais profundas as fragilidades pessoais e menos o espaço relacional, familiar, comunitário e social, para acolher e transformar a intensidade de tudo o que vamos sentindo nestes tempos teimosamente difíceis, mais o medo dará lugar ao pânico, a raiva ao ódio e à violência, e a tristeza ao desamparo e ao desespero. E mais perto estaremos de um pânico paralisante, de uma clivagem arcaica do mundo em “nós” (bons) vs “eles” (maus), e de uma denegação maníaca do medo e da própria realidade (terreno fértil para perigosos comportamentos de risco, teorias da conspiração e discursos que mais não fazem do que projetar a angústia nos mais diversos bodes expiatórios). 
  Queiramos ou não, estamos juntos na tempestade (bem sei que em barcos de resistência e conforto muito desiguais). E não temos como escapar à interdependência (afetiva, social, económica, de saúde, etc.) da natureza humana: sim(!), na nossa autonomia dependemos todos uns dos outros! Não parece, por isso, haver reação de vida a esta emergência (sanitária, antes de tudo, mas também afetiva, social e económica) que não seja a da humanidade de não desistir de transformar a intensidade de tudo aquilo que vamos sentindo em gestos de relação e vida!

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