Tinha
16 anos e muito menos desenvoltura do que hoje. Bem no canto mal-afamado das
traseiras do pavilhão B, muito a medo, a Maria beijou, pela primeira vez, o
Ricardo. Ele estava longe de ser um poço de ternura ou de ter um décimo do
charme dos galãs dos filmes que consumia vorazmente. Mas tinha um estilo de fora da lei que a puxava. Era uma
espécie de atração fatal. “Para uma menina demasiado certinha como eu, mas com
a cabeça cheia de fantasmas, acho que o Ricardo era a oportunidade de
desalinhar, da menina exemplar mandar à fava a pressão e sentir a adrenalina do
perigo nas veias. Era uma maneira de pecar, de passar ao ato uma pequeníssima
parte dos pecados que me passavam pela cabeça. Mas talvez fosse, também, uma maneira
de me penitenciar, de me punir por isso. Talvez por isso lhe tenha aturado
tanto, durante tanto tempo. Ele tratava-me mal. Humilhava-me…”. Quando terminou
com ele, muitas zangas e recomeços depois, já no 4º ano da Faculdade, jurara a
si mesma: “nunca mais me meto com um tipo assim”. O Bernardo veio mais de dois
anos depois, já a Maria tinha iniciado carreira na Consultora. Era um tipo muito
mais polido e atencioso, no início. Tem mais mundo e parecem ter, de facto, um
ou outro ponto em comum. Mas, o príncipe foi virando sapo (talvez seja sempre
um bocadinho assim quando o ressentimento vai tomando o lugar dos beijos e
abraços apaixonados): “Não me maltrata ou humilha tão abertamente como o
Ricardo, mas a cascata de elogios e romantismos dos primeiros tempos, depressa
se tornou num rol de críticas: críticas à minha postura ao pé dos pais, dos
amigos, do empregado de café lá do bairro. Críticas à minha comida, à roupa, ao
cabelo novo, à organização da casa. Aos meus 5 Kgs a mais. A tudo! E sabe, o que
é mais irónico é que eu acabo sempre a insultá-lo por dentro… e a pedir-lhe desculpa
por fora. A seguir fico tão atordoada que me sinto híper-culpada … Não sei se por medo de o perder, por culpa ou lá pelo raio que é… acabo a mimá-lo mais e
mais. Para o compensar dos insultos que não lhe disse. Ele aproveita para me
fazer pedir desculpa mais 10 vezes pela minha postura com ele, com os pais
dele, os amigos dele, o homem do café, e o raio que o parta! Tudo, tudo, se
repete! De uma forma mais refinada e nem um bocadinho “fora-da-lei”, mas continuo
a sentir-me a menina humilhada do canto mal-afamado das traseiras do pavilhão B.
Sempre entre a fúria que escondo, a culpa de ficar furiosa, a solidão de me
sentir um lixo e o amor. Eu sei lá se é amor! Se fosse amor eu não chorava
todos os dias, dia após dia! Eu sei lá o que é o amor! Eu já não sei nada! Porque
é que a minha vida é tão complicada?!”
Reencontrara, no Verão passado, o
Nuno. (de quem a Maria se tinha afastado, assustada, com os seus movimentos
encantadores de fazer babar qualquer mulher). “Continua bonitão e cuidadoso. Um
verdadeiro gentleman. Mas os olhos
dele brilham mais. Está mais confiante. Mais gingão. Mais homem. Desde esse dia
que me vem à cabeça de quando em vez. Bem, na verdade, mais do que de quando em
vez. Na verdade, na verdade, muito mais do que de quando em vez. Até já sonhei com ele. Várias vezes!”
Talvez o que a Maria esteja a querer
dizer é que, no fundo, talvez saiba o que é o amor e que, por isso, pediu ajuda
para se (re)encontrar, dentro de si, com a transparência e a coragem que precisa
para perseguir uma vida cheia. Ora mais simples, ora mais dura, mas cheia!
Talvez o que a Maria esteja a
querer dizer, ainda, é que está muito magoada com os Ricardos e os Bernardos da
sua vida, mas que também está muito amargurada consigo própria. Por repetir, de
formas diferentes, a batota de fingir acreditar que o amor é, na melhor das
hipóteses, uma bebedeira de adrenalina (a que se segue, invariavelmente, a
ressaca) ou, quando muito, o prémio de consolação (de uma castração constante
de quase tudo o que é) ser preferível ao vazio de estar sozinha. Talvez o Nuno,
qual estrela guia, tenha (re)aparecido (de dentro de si) naquela noite de Verão
(e nos sonhos de Outono que se lhe seguiram) para lhe recordar o que ela há
muito já sabe: que, no amor, a adrenalina não vem do perigo, e muito menos da
culpa, da humilhação ou da dor; que o amor obriga a pormo-nos em causa e a
repararmos erros, mas nunca a carregarmos às costas o peso do mundo e da
violência velada de se tentar ser alguém que se não é. Talvez o Nuno, qual
estrela guia, tenha (re)aparecido (de dentro de si) naquela noite de Verão (e
nos sonhos de Outono que se lhe seguiram) para lhe recordar que sempre que duas
pessoas fazem da relação o lugar seguro onde os dois podem, a uma só voz, serem
iguais a si próprios - compatibilizando, numa só relação, colo e desejo,
cuidado e exigência, adrenalina e quietude - talvez se esteja muito mais
próximo de viver um grande amor!
Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o
privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que
estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser,
este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias
reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.
Obrigada...
ResponderEliminarMuito obrigado eu!
EliminarO conteúdo da última frase concentra as várias dimensões que uma relação deve contemplar para se tornar completa, livre e equilibrada. Este texto, ao contrário de tantas "belas histórias de palavras bonitas" produzidas na atualidade , deixa claras tais dimensões, corroboradas, pertinentemente, por uma história real. Um obrigado sincero pela partilha.
ResponderEliminarUm muito obrigado (sincero!) pela simpatia do seu comentário.
EliminarTendo a concordar consigo: acho que as histórias mais bonitas não são as que não ignoram a tristeza, a fúria, o desamparo ou os desencontros (como se eles deixassem de existir por decreto ou, num passe de mágica, desaparecessem só porque não se fala deles). Talvez seja mesmo um bocadinho ao contrário. Talvez quanto mais tivermos pessoas ao pé de quem não precisamos tanto de fugir de tudo o que sentimos (mesmo do que dói), mais próximos estejamos de nos encontrarmos, dentro de nós, com a esperança, o brilhozinho nos olhos e as borboletas na barriga.
PS: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, esta, como todas as histórias do blogue, sendo inspiradas em histórias reais, estão muito longe de corresponder a uma descrição literal. Na verdade, muitas das vezes, são uma espécie de condensação de várias histórias.
Obrigada...
ResponderEliminarMuito obrigado eu, Younique! Seja muito bem-vinda/bem-vindo a este espaço.
ResponderEliminar