domingo, 22 de abril de 2018

Ladrões da alegria!

 Já tinha feito várias comunicações, para os mais diversos públicos. Mas desta vez era diferente. Ia falar com alguns dos colegas que mais admirava sentados bem na primeira fila da plateia. Se ficou muito orgulhosa com o convite, a verdade é que a ideia de falhar perante os seus Mestres a atemorizava. Começou tensa, com a voz levemente trémula, mas rapidamente ganhou confiança, começando a discorrer, com alma e saber, sobre os assuntos que a apaixonam.
 Estava radiante, no final. E orgulhosa, muito orgulhosa. Pelos elogios sentidos dos pares e dos Mestres. Mas, principalmente, por se ter conseguido soltar ao pé deles. Estava radiante. E orgulhosa, muito orgulhosa. Por mais uma importante vitória na construção do seu percurso profissional. Mas, principalmente, por sentir que tinha vencido, de vez, o fantasma de que, na hora H, acabava sempre por falhar. Estava radiante. E orgulhosa, muito orgulhosa. Até que o Bernardo lhe deu um abraço mortiço e lhe segreda ao ouvido um seco: disseste muitas vezes: digamos assim. Tens de ter atenção a essas muletas. Sem mais. 
 E, num ápice, a Maria sentiu a alegria a esvair-se entre os dedos. Sem apelo nem agravo. Podia ter sido um laivo de inveja de um colega que não tolera o sucesso alheio. Ou até um tique narcísico de um Mestre empertigado. Mas não foi! Foi o Bernardo. O Bernardo a quem a Maria não desistiu, ainda, de acordar com um beijo. Podia ter posto o Bernardo no sítio. Mas, como fazia sempre, respirou fundo e pensou para si: Ele é assim. É assim em tudo. Mas lá no fundo gosta de mim. E estará orgulhoso à sua maneira. Só que não consegue demonstrar. O que é que hei-de fazer?

Porque é que mesmo sendo sensíveis, inteligentes, afetuosos e atentos insistimos, tantas vezes, vezes de mais, em nos comportarmos como se, entre o dar e o receber, não sentíssemos uma distância colossal que magoa?
Porque é que mesmo sendo sensíveis, inteligentes, afetuosos e atentos insistimos, tantas vezes, vezes de mais, em nos comportarmos como se tivéssemos, invariavelmente, de engolir a dor? 
Porque é que mesmo sendo sensíveis, inteligentes, afetuosos e atentos insistimos, tantas vezes, vezes de mais, em nos comportarmos como se não nos pudéssemos revoltar com o que nos magoa?
Porque é que mesmo sendo sensíveis, inteligentes, afetuosos e atentos insistimos, tantas vezes, vezes de mais, em nos comportarmos como se um Amor inteiro, vivo e recíproco ficasse sempre bem nos romances, mas nunca pudesse ser um desejo de vida, pelo qual se luta com unhas e dentes?

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

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