Há muito que não ia a um Festival
de Verão. Não que tivesse deixado de gostar de música. Mas o último tinha sido
tão dolorosamente inesquecível que, nos anos seguintes, só os outdoors a anunciar as bandas a deixavam
de cabelos em pé. Passaram cincos anos desde que se desunhou para surpreender o
João com dois bilhetes para o esgotadíssimo concerto da banda que tinham adotado
como a “oficial” do seu amor. Se a reação frouxa João não deixou de intensificar
umas quantas luzes de alerta que, há muito, vinham crescendo dentro da Maria, o
pior estava para vir. Toda a gente parecia envolvida pela atmosfera intensa do
concerto. Toda a gente menos a Maria e o João. Ele já não disfarçava o enfado.
Mas a Maria não desarmava. Abraçou-o. Deu-lhe a mão. Mas nada encaixava. Há
muito que pareciam dois corpos estranhos. Nessa mesma noite, o João já não
dormira em casa.
Já a viver um amor terno e intenso com o Carlos, a Maria estava prestes
a voltar ao festival que selara o fim da sua relação com o João. O Carlos tinha
movido montanhas para conseguir dois bilhetes para o esgotadíssimo concerto da
banda que tinham adotado como a “oficial” do seu amor. De gesto em gesto, o
Carlos arrebatava a Maria como o João nunca fora capaz de fazer. E ela andava
tão de bem com a vida que não mais se lembrara do João. Não até ao dia do
concerto, em que, sem saber bem porquê, acordou a pensar nele. A leveza tinha
dado lugar a uma angústia difusa, que não mais a largou nesse dia. Estava
implicativa com o Carlos: em casa, no caminho para o festival, no concerto. Mas
ele não desarmou. Puxou-a para si, abraçou-a e perguntou-lhe o que é que se
passava. Mas a Maria, que costumava sentir o abraço do Carlos como o lugar mais
seguro do mundo, estava assustadiça. E esquivou-se com um seco: não se passa nada. O que é que se havia de
passar, refugiando-se, de novo, na implicância. Vezes e vezes sem conta
até, já em casa, o Carlos ter rebentado numa discussão acesa (na sequência da
qual viriam a sentir-se ainda mais próximos).
Tudo parecia passar-se como se, de repente, aos olhos da Maria, o Carlos
tivesse, por momentos, deixado de ser o poço de charme por quem se mantém
profundamente apaixonada, para ser uma espécie de fiel depositário de algumas
das suas dores e medos mais recônditos. Tudo parecia passar-se como se, por
momentos, aos olhos da Maria, o Carlos tivesse deixado de ser o homem
profundamente apaixonado e apaixonante para se tornar abandonante.
Talvez não haja muito como (para o bem e para o mal) não projetarmos no
outro significativo os aspetos essenciais da nossa história relacional. Esta aparente
inevitabilidade (que, grosso modo, Freud cunhou como transferência), quando
massiva, pode aproximar-nos do risco de reduzir o outro a uma espécie de
prolongamento do nosso mundo interno. Mas é também ela, ao atualizar feridas
antigas em novas (e velhas) relações, que abre a porta para a reparação, para a
criatividade, para o pensamento e para a vida. Não desistamos nós de encontrar
quem faça diferente! Não desistamos nós de encontrar quem faça melhor! Não
desistamos nós de ver o outro (na sua diferença e autonomia) para lá dos
holofotes da nossa projeção. Não
desista o outro de fazer diferente! Não desista o outro de fazer melhor! Por
mais que, mesmo sem querer, às vezes o “empurremos” (na secreta esperança de
que não o faça!) para a repetição de alguns dos aspetos mais dolorosos da nossa
história!
Nota: Atendendo ao profundo
respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas
histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo,
nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do
blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias
reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.
Sem comentários:
Enviar um comentário