Às 7h da manhã já se sentou em frente da máquina, que manobra com
mestria. Será assim até às 16h, numa azáfama que o conforta. Ao toque de saída
do turno, esperam-no os biscates com que, há muito, compõe as poupanças para
acautelar o futuro. Termina o dia quase sempre depois das 21h00, numa correria
para chegar a casa a tempo de ainda aconchegar o cobertor aos filhos. A mulher
queria-o em casa mais cedo. As contas são apertadas, e sem os biscates talvez
não houvesse lugar para poupanças, mas não há dinheiro que pague poder-se
jantar em família, argumenta. O Luís sabe disso, mas acaba sempre por adiar o
descanso, como se a ele não tivesse direito. Quando finalmente cai na cama,
exausto, não consegue descansar. Tudo parece passar-se como se as angústias que,
à custa de uma hiperatividade funcional (como lhe chamou Sami Ali), vai
varrendo para debaixo do tapete, durante o dia, surgissem em catadupa quando
apaga a luz. Quanto mais faz por dormir, mais o pensamento vai saltando de
inquietação em inquietação. Tudo lhe parece vir à cabeça: do planeamento meticuloso
do dia de trabalho ou da gestão financeira das suas poupanças, ao toque de
culpa por, quase nunca, estar em casa a horas de brincar com os miúdos ou de
lhes supervisionar os TPC. Quanto mais faz por dormir, mais se sente dominado
pela angústia, dando por si a tomar como certo que, tarde ou cedo, os filhos o
culparão pelas ausências; que, tarde ou cedo, a mulher se fartará de si e da
sua dificuldade em parar… para desfrutar da vida. Quando já não aguenta mais o galopar
da espiral ansiosa, levanta-se, vai direito à caixa dos medicamentos e, sucumbe
ao comprimido que, contra a recomendação da sua médica assistente, acaba por
tomar noite após noite.
À semelhança do que parece acontecer em tantos outros contextos, também à boleia dos distúrbios de sono parece
haver um consumo excessivo de medicação psicotrópica. Não que, evidentemente, a terapêutica medicamentosa não possa,
mediante avaliação médica, ser útil em muitos casos. Mas talvez seja importante
assumirmos que, em tantas e tantas circunstâncias, os Luíses e as Luísas precisam
de espaços relacionais (psicoterapêuticos, porventura) que lhes permitam pensar
e metabolizar a angústia que, dia após dia, lhes vai sugando o prazer e o
descanso. Afinal de contas, talvez não deixemos nunca (!!!) de precisar de quem
(ao nosso lado e dentro de nós) nos acolha a angústia sem soçobrar, nos ajude a
configurá-la em palavras, a integrá-la em histórias que lhe deem um sentido na
nossa história. A ser assim, talvez só nos vamos reconciliando verdadeiramente
com o sono, à medida que formos sendo capazes de puxar para nós quem (ao nosso
lado e dentro de nós!) nos aconchegue o sono e nos acarinhe o sonho… com
histórias e cantigas de embalar!
Nota: Atendendo ao profundo
respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas
histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo,
nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do
blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias
reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.
Muito bem descrito. Parabéns José Sarmento!
ResponderEliminarCom palavras certeiras. Economia em baixa, escassez de recursos, alterações das vidas de muitas pessoas, a custo mil. Exemplo destes Luíses e Luisas que se esqueceram, se esquecem de si próprios. Explicar o relacional? eles e elas entendem...então como parar? STOP! jogar, brincar, sair e divertir, é o lema. A casa, o lar, a intimidade (atenção).
Muito obrigado pelo seu comentário, Laura! Apenas uma nota: o meu nome é José Sargento e não José Sarmento
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