domingo, 10 de março de 2019

Posso-me zangar?


  Não se lembra de uma única chamada de atenção dos Professores, em criança. Todos – professores, funcionários, pais dos colegas – lhe elogiavam a delicadeza, o bom trato, a inteligência, o foco nas tarefas escolares, o modo como ignorava olimpicamente as provocações dos colegas ou como geria conflitos no recreio com a maturidade de uma adulta muito bem resolvida. Com os pais não era muito diferente. Em toda a sua infância, não recorda mais do que duas ou três chamadas de atenção mais vigorosas. Recorda-lhes o motivo, mas principalmente a culpa avassaladora e o medo a perder de vista com que as viveu. A imagem, a roçar a perfeição, que se foi habituando a vestir trazia-lhe inúmeros ganhos: do ar babado dos pais e avós, à admiração de professores e funcionários. Mas, ao mesmo tempo, que se sentia profundamente valorizada por tudo o que fazia bem, foi crescendo, dentro de si, o medo de não haver espaço para o deslize: na sua performance escolar, familiar e social, mas também em relação a tudo o que sentia. E, à medida que as vestes de “menina perfeita” se lhe agarravam à pele, crescia a culpa de cada vez que não conseguia controlar milimetricamente o que sentia, pensava ou fazia e lhe saíam um ato mais irrefletido, uma fantasia mais vincada ou uma performance aquém da perfeição. Estas poucas vezes em que, num rasgo de vida, se distraía eram, invariavelmente, seguidas por uma culpa imensa, uma tristeza a perder de vista, um medo avassalador da perda e, claro, por um reforço de todos os instrumentos que a ajudassem a ser mais certinha ainda! Afinal de contas, se estava claro para a Maria que todos admiravam a sua imagem de “boa menina”,  ia galopando sobre os seus recursos saudáveis o medo difuso de que todos a deixassem cair no dia em que suspeitassem que também tem um lado lunar. 
   Diz-me, num choro zangado: “mas tem ideia do que é crescer a não me poder zangar com ninguém? Com o estúpido do Tomás, que dia sim dia não me chamava betinha da Professora. Tem ideia do que é evitar jogar à sueca no liceu, porque quando perdia só me apetecia virar a mesa e mandar com as cartas à cara da minha colega que não jogava um caracol? E, apesar disso, acabar, mais uma vez, a fazer de boa samaritana: a tolerar as suas críticas à forma como eu jogava e ainda a confortá-la por cima, porque eu nunca podia ser outra coisa que não a Maria querida? Tem ideia do que é? E os meus pais? Como é que a minha mãe nunca deu conta que eu era tudo menos uma menina feliz? Como é que nunca deu conta que, por detrás, daquele doce de adolescente, estava uma menina às voltas com um vendaval de medos? Porque é que eu namorei, anos a fio, com palermas que só me faziam sentir inferior e mal-amada e eu, para variar, lá estava a fazer de boa samaritana compreensiva? E porquê que ainda hoje me custa tanto pôr as pessoas no sítio? Porque é que, por mais razão que tenha, ainda me sinto culpada se meto o dedo no nariz de alguém?

   Talvez seja sempre um bocadinho assim. Talvez as emoções e os sentimentos (da tristeza à raiva, passando pelo medo, pelo encantamento, pela alegria ou pela desilusão) sejam, em certo sentido, “pensamentos à procura de um pensador” (recordando Bion) que, sempre que não encontram espaço relacional para se exprimirem, vão criando ruído e entraves ao crescimento… e à relação. Já quando encontram quem os acolha (não se assustando, ao mesmo tempo que sinaliza limites) e ajude a pensar (ajudando a vesti-los de palavras e a liga-los com aspetos essenciais da sua história) serão uma espécie de força motriz de vida, que impulsiona o crescimento… e aproxima o Outro!

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

4 comentários:

  1. Fantastico...Gostei imenso.
    A minha filha, filha de pai separados, é a menina perfeita que eu teimo em tentar que aprenda apenas a ser...menina.
    11 anos de perfeiçao...melhor aluna, educada, sensivel, inteligente, sagaz, bem humorada, responsavel e muito bonita... 9 anos de pai e mae... mãe a 100%... pai misógino, com falha narcisica brutal..tb o filho perfeito. Curiosamente, era eu, para ele, a imperfeiçao em pessoa...é facil criticar qd nunca nada é feito por nós... um banho, um biberão, uma fralda...nem sequer uma ida às urgencias as 4 da manhã... nada.. apenas exigia e reinava....e como filho e aluno perfeito incutiu o mesmo à pobre criatura... sempre à procura da aprovaçao paterna....
    Para esse peditório eu dei durante 12 anos e saí ainda mais "imperfeita" mas agora sou feliz, na minha "imperfeiçao".
    Superei a violencia e abusos verbais e as humilhações... percebi que por mais que desse ou fizesse, jamais atingiria o patamar minimo da "perfeiçao" do senhor que reinava sobre mim. Adiante... durante o tempo que ambos vivemos com a minha filha, um pouco as escondidas, deixei-a sujar-se nas poças de lama, rasgar as calças por subir a uma arvore... deixei-a chorar qd nao conseguiu atingir o seu objetivo tentando que ela entendesse que faz parte da vida, nao ganhar sempre, mas que devemos continuar a tentar... tentei mostrar que a imperfeição para uns pode ser a perfeiçao de outros, porque somos todos diferentes e é na diferença que se gera a riqueza de saberes.
    Lutei muito para que ela conseguisse ser menina e nao boneca de porcelana. Comigo, sinto-a feliz mas depressa volta ao modo "princesa perfeita"... e temo por ela porque nao tem coragem de questionar o pai, de lhe dizer o que quer ou sente... apenas tenta agradar-lhe...
    E porque a justiça é injusta e o dito tem muito dinheiro e eu nao, e ele mora na mansao onde ela nasceu e eu acabei a morar a mais de 60km..fiquei sem ela... 4 dias por mes...após tantos anos em que nem durante uma única vez o pai se levantou da cama por ela...
    E agora, a menina perfeita, é tao mas tao perfeita, que ate acha normal o pai nao me deixar falar com ela e arrancar o telefone do fio para eu nao ligar e mudar o numero dela e nao mo dar...
    E passam-se 15 dias e menina perfeita, porque o pai perfeito assim designa, nao contesta, embora nao concorde...e submissa aceita nao falar comigo.
    Eu pergunto: sera que em 4 dias por mês consigo que ela acredite que nao ha qualquer problema em ser imperfeita? Que a perfeiçao é utopia ou psicopatologia? Só quero que seja menina..e que se tiver que sair um palavrao qd bate numa esquina, que saia. Alivia, sabe-se la porquê e como, mas alivia.. que pode sujar-se e dizer "nao quero" sem por isso ser recriminada. Tenho medo... a minha menina que querem perfeita, será uma perfeita tonta, submissa e infeliz, que apenas saberá ser o que os outros querem que seja e nao o que sonha ser... e mais medo tenho que à primeira falha de que tenha consciência, se questione enquanto pessoa e nao se ache digna.
    A minha menina,que querem que seja perfeita, é-o e eu gostava que nao fosse,talvez porque eu mesma só comecei a ser mulher e feliz quando abracei as minhas imperfeições e consegui gritar para mim mesma: nao! Nao quero... sou mais do que isto, mereço mais do que isto.
    Hoje, a minha menina, que querem que seja perfeita, é elogiada por onde passa e isso assusta-me, porque antes das tempestades os passarinhos calam-se e a minha menina tao perfeita é um passarinho silencioso. Qd sentir a tempestade,será ela capaz de resistir, ou será mais uma daquelas que desistem, talvez da propria vida, por nao saberem como lidar com o olhar pseudo-reprovador de quem deixou de a achar perfeita?
    Sao assustadores os pais perfeitos que criam filhos perfeitos num mundo totalmente imperfeito...
    Mas tenho fé que um pouco de mim continua a lá estar e talvez, talvez a miudinha perfeita, um dia destes perceba que se for um pouco menos perfeira será decerto mais feliz...
    Desculpe o desabafo. Soube bem. Obrigada e continue �� Parabéns.

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  2. Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

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  3. “E porquê que ainda hoje me custa tanto pôr as pessoas no sítio?”
    E é esta pergunta que muitas vezes faço… mesmo assim não sei como mudar…

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  4. Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

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