A Maria foi crescendo muito metida consigo, com a
ideia difusa de possuir um qualquer irreparável defeito de fabrico. Só isso
explicaria que as notas ficassem sempre aquém das da irmã e das primas. Só isso
explicaria que, em toda a infância e adolescência, nunca se tenha sentido
verdadeiramente acolhida em nenhum grupo. Só isso explicaria que se fosse
sentindo vezes demais uma espécie de corpo estranho, que ninguém conseguia
decifrar.
Conta-me, num
choro sentido, a história de uma personagem de banda desenhada que a acompanhou
durante toda a adolescência: a Kate era uma adolescente introvertida, sozinha e
muito, muito triste. Em pequena teria sido assolada por uma espécie de maldição,
em função da qual não podia olhar o mundo lá fora para lá do pôr do sol, sob
pena de ter uma visão catastrófica, de cegar logo depois e de morrer, por fim.
As cortinas de sua casa eram, por isso, fechadas, uma a uma, mal começava a
cair a tarde.
Talvez o que
a Maria quisesse dizer fosse que, ao contrário do que a maldição da Kate dava a
entender, o conhecimento (do mundo lá fora e, sobretudo, do mundo que pulula
dentro de nós) é vida! Pode assustar ou doer muito, num ou noutro momento. Mas
é vida. E relação. Ou não precisássemos todos de quem (dentro de nós e no mundo
lá fora), acolhendo o medo do desconhecido e acreditando no melhor de nós, nos
ajude a desbravar avenidas no pensamento.
Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade
das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos
princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como
não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por
vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de
corresponder a uma descrição literal.
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