De olhar vivo e pensamento
acutilante, o Manuel foi alimentando a ideia de que a inteligência, o
investimento académico e o conhecimento não eram o seu forte. Por mais que as
suas competências sobressaíssem nas mais diversas áreas que não a académica,
insistia na ideia de que o investimento intelectual era uma benesse só ao
alcance do “lado inteligente da família”, epíteto que reservava para a irmã e
para as primas. Muito mais por isso do que por falta de competências de base
(que manifestamente tinha!), foi vivendo o período de avaliações como uma espécie
de morte anunciada das suas já depauperadas (dizia ele!) competências. Insistia,
irritado: “eu não consigo estudar! Não me concentro! Procrastino! Eu sou assim!
Nunca vou conseguir!”. E, de facto, de cada vez que se sentava para estudar, mil
e uma tarefas (a louça por lavar, a estante para arrumar, a caixa de email por
organizar) ganhavam, de repente, uma urgência que nunca tiveram, a não ser
quando lhe permitiam, uma vez mais, não pôr à prova as suas competências. Tudo
parecia passar-se como se uma derrota por falta de comparência (mesmo que à
custa de uma ansiedade superlativa antes dos exames) fosse, invariavelmente,
mais suportável do que uma derrota (ou uma vitória!) com sangue, suor e lágrimas.
A Maria preparava os exames
meticulosamente. Não tinha tempo para namorar, para ir ver a avó ou para se
demorar nos almoços com a mãe. Muito menos para pequenos prazeres, aos quais só
se permitia nas férias ou na primeira semana de aulas do semestre. Era preciso estudar, estudar e estudar. Apesar
de, há muito, colecionar boas notas, também ela se sentia (!) do lado dos menos
dotados! Com maior ou menor dificuldade,
as colegas mais próximas conseguiam compatibilizar o estudo intenso com tempo
para namorar e cafés para descomprimir. E, chegada a hora, pareciam sempre conseguir
gerir a ansiedade que a avaliação desperta. “A minha única arma é o trabalho e
o esforço. Eu não sei como é que elas conseguem. Têm melhores notas do que eu,
mas namoram, e só no limite é que abdicam da sessão de cinema ou do café à 6ª
feira à noite. E a Filipa, só se não der mesmo é que deixa de ir ao ensaio da
tuna. Já eu não tenho tempo para nada! E não sei como é que elas conseguem! Se
eu estudasse o que elas estudam… não aguentava. Mesmo assim é o que o que se vê”:
uma espécie de reclusão, como se estudar não pudesse ser melhor do que uma
avalanche de ansiedade e de um doloroso colecionar de sacrifícios.
Os momentos de avaliação (académicos ou outros) despertam – sempre! – stresse.
E não há nenhum mal nisso. Antes pelo contrário! Ou não servisse o stresse para
ativar todos os nossos recursos, necessários para face aos desafios. Mas e quando
o stresse atinge tal magnitude que, de repente, entorpece uma parte muito significativa
das nossas competências?
Talvez olhemos, vezes de mais, para o sucesso académico como uma
decorrência direta da inteligência. Se, evidentemente, competências cognitivas
de base são, quase sempre, condição necessária para um bom desempenho académico,
estarão muito longe de ser a única variável significativa para o sucesso/insucesso.
Lembro-me sempre, a este propósito, dos penaltis do célebre Portugal vs Polónia
do Euro 2016, em que o Ronaldo, perante a recusa do João Moutinho em bater um penalti,
o empurrou para o golo, ao gritar-lhe qualquer coisa como: vai, tu bates bem! Se
falhares que se lixe (numa linguagem um bocadinho mais carregada, na verdade)! Sempre
que os Manueis e as Marias descobrem, dentro de si, quem acredite em e por si
antes mesmo de eles próprios acreditarem, empurrando-os para a vitória e
segurando-os na derrota estarão, tenho para mim, muito mais próximos de transformar
o stresse no motor para, com esforço e entusiasmo, se sintonizarem com o melhor
dos seus recursos. Quanto mais o fizer, mais o Manuel perceberá (tenho para
mim) que pode vencer o medo de ir a jogo! Quanto mais o fizer, mais a Maria
perceberá (tenho para mim) que tem todos os recursos para, com flexibilidade, (re)agir
perante o imprevisto e ir direta ao essencial (em vez de se perder em
pormenores e notas de rodapé).
Nota:
Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o
privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que
estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser,
este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou
noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma
descrição literal.
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