Diz – num tom muito mais irritado do que displicente ou sobranceiro –
que não consegue estudar. Foi por isso e pela “estúpida mania de bloquear nos
exames” que teve um rotundo chumbo na prova que lhe permitiria terminar o
Secundário e entrar no Curso que, de forma muito envergonhada, ambiciona. De
forma tão envergonhada que se apressa a dizer: “nunca na vida vou conseguir
entrar”, irritando-se de forma veemente se alguém lhe chama a atenção para as
possibilidades reais que tem.
Acabadinha de fazer 18 anos, a Maria é uma miúda afetuosa e toda
despachada, com ar de quem não leva desaforos para casa. Tem um olhar vivo e
inteligente. Move-se com mestria por entre vários grupos de amigos e tem, quase
sempre, de forma muito natural, uma posição de liderança nas várias atividades
extracurriculares em que está inserida. Apesar de todas as suas qualidades tem vindo a poupar nos
desejos muito para lá do razoável. Até para si parece ter medo de os sussurrar.
Como se, à cautela, preferisse poupar nos
sonhos para poupar nas desilusões. Parece, apesar de todo o seu potencial, verdadeiramente bloqueada
de medo. Talvez seja isso que a impede de desejar a plenos pulmões, em vez de
ficar sempre a meio caminho entre o desejo e o medo. Diz que não se
consegue concentrar para estudar. Senta-se com o livro à frente, e logo se
levanta para ir afiar o lápis. Depois envia uma qualquer sms absolutamente
inadiável. Faz uma passagem rápida pelo facebook (que acaba, claro, por durar
mais de uma hora). Levanta-se, novamente, agora para arrumar a prateleira dos
CDs. E agora? Agora já é hora de jantar! Como somos todos tão bons a inventar
prioridades de última hora quando queremos “fugir” do que nos mete medo! Numa
das suas deambulações pelo facebook encontrou um daqueles textos bem ao género
de: “como deixar de procrastinar em 10 passos”. Apressa-se a dizer: “mas comigo
não resulta! Eu devo ter défice de atenção. E dos graves!”. E bem, bem seletivo
acrescentaria eu, ou não fosse a Maria uma miúda atenta a todos os pormenores
na hora de ler os pais, os professores ou os amigos. Ou não fosse a Maria capaz
de se concentrar em todas as tarefas intelectualmente exigentes com que tem que
lidar em algumas das suas atividades extracurriculares. Talvez o que atormente
a Maria não seja uma incapacidade mais ou menos estrutural de se concentrar. Talvez
essa seja só a estratégia que vem construindo há muito para não ir a jogo,
evitando, assim, confrontar-se com os medos mais ou menos irrealistas (quais
moinhos de vento do D. Quixote) que, involuntariamente, foi alimentando. Se,
por um lado, se sente uma rapariga cheia de capacidades, por outro parece
sentir-se permanentemente assombrada por um medo difuso, mas omnipresente: o
medo de falhar, de ser realmente incapaz, de ser uma desilusão para os pais, de
ser o patinho feio lá de casa (não é fácil ouvir os professores dia sim dia não
a evocarem o rol de 19 e 20 que o seu irmão mais velho foi colecionando antes
de ir para a Faculdade), etc. etc.
Mas não é só na Escola que tem perdido por falta de
comparência! A sintonia com o Bernardo é indisfarçável e a troca de olhares
verdadeiramente enternecedora. Embora resista em admiti-lo até para si, há
muito que a Maria suspira pelo seu abraço. Mas qual livro de matemática, acaba
sempre por boicotar qualquer hipótese de ficarem a sós. Acaba sempre por “chutar
para canto” qualquer sms mais insinuante. ´
Talvez seja sempre um bocadinho assim. Talvez
fiquemos todos (!) um bocadinho menos aptos para pensar, para nos
concentrarmos, para estudar, para trabalhar, para criar, para namorar, para nos
divertirmos, para nos fazermos à vida… sempre que poupamos nos desejos (e nos
meios para os configurar em projetos viáveis) para poupar nas desilusões.
Nota: Atendendo ao profundo respeito pela
intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e
aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente),
como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo,
uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está
muito longe de corresponder a uma descrição literal.
Bom dia! Muito obrigado pela publicação.
ResponderEliminarPoderá o sucesso e excelência, em alguns campos da vida (como atividades extracurriculares), fazer a pessoa sentir-se competente e, assim, autoconfiante na relação consigo própria e com os outros, escondendo a frustração por prestações menos conseguidas nas coisas que (realmente e, muitas vezes, inconscientemente)valoriza mais (ex.: a escola), frustração essa que vai vindo ao de cima em pequenas atitudes que vão ganhando maior amplitude com o crescimento?
Muito obrigado pelo seu comentário!
EliminarEm tese, num ou noutro caso muito específico, imagino que possa. Tenho, todavia, a ideia que as experiências de valorização pessoal (sejam elas na escola ou nas atividades extra-curriculares), ao funcionarem como "injeções" de confiança, tornam as crianças, os adolescentes e os adultos (!) mais aptos para se atirarem com "garra", e de forma cada vez mais generalizada, aos desafios.