Consumidor voraz de cinema, o
Pedro costumava falar de si através dos filmes e séries, na (pouco) secreta
esperança que eu o pudesse ajudar a ligar os enredos e as personagens, com os
novelos da sua vida. Uma das suas personagens favoritas era o Giusepe, pequeno herói
de um velho filme, que uma tia avó lhe dera há muitos Natais atrás. De sorriso reguila
e joelhos esfolados de tanto trepar às árvores e saltar muros, o Giuseppe foi
apanhado de rompante pelo terror Nazi, como milhões de outros meninos (e
graúdos) de origem judia. Sempre que a mãe ouvia as passadas pesadas dos soldados
a subir a velha escadaria de madeira que dava acesso à casa, escondia-o numa
espécie de alçapão secreto. E dizia-lhe, numa voz terna, mas firme: “não tenhas
medo!” A cena repetiu-se vezes sem conta, até que, numa manhã fria de janeiro,
Giuseppe, escondido no alçapão, foi o único judeu do bairro a não ser levado
pelos soldados das botas pesadas. Acabou por ser adotado por uma vizinha, amiga
da família, aos cuidados de quem cresceu. Nunca mais largou o amuleto da sorte que
a mãe, adivinhando o que viria a acontecer, lhe tinha dado, logo após a
primeira visita dos soldados Nazis. E sempre (mas sempre! enfatiza o Pedro) que
se sentia assustado ou inseguro, recordava a voz terna e firme da mãe a
dizer-lhe: “não tenhas medo”. O medo não desaparecia. Mas a coragem ganhava-lhe
aos pontos (sublinha o Pedro).
Talvez o que o Pedro estivesse a querer dizer fosse que queria pensar as
personagens e as histórias da sua vida, arrumando-as e desarrumando-as as vezes
que fossem necessárias, até encontrar quem lhe pudesse sussurrar, numa voz
terna e firme: “não tenhas medo!” Talvez o que o Pedro estivesse a querer dizer
fosse que todos precisamos de quem, dentro de nós, faça de amuleto da sorte, não
se assuste com os nossos medos, e nos ajude
a serená-los, a pensá-los, a configurá-los em palavras, histórias e gestos... E
que essas pessoas, mesmo acabando por partir (partindo-nos, com isso, o coração),
são eternas, dentro de nós! Quais estrelas guia, vivem milhares de anos luz só
para nos iluminar o caminho! Talvez o que o Pedro estivesse a querer dizer
fosse que a audácia, a autonomia e o desejo nunca possam crescer à margem desta
confiança básica (recordando Erikson) na relação.
Nota: Atendendo ao profundo
respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas
histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo,
nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do
blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais -
está muito longe de corresponder a uma descrição literal.
Maravilhoso texto! Obrigada
ResponderEliminarMuito obrigado!
EliminarLindíssimo. Obrigada
ResponderEliminarMuito obrigado!
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