domingo, 1 de março de 2020

Posso ser à minha maneira?

  O piercing na sobrancelha, sente-o agora, terá sido, mais do que uma forma de chocar os pais, o modo que encontrara para experimentar contrariá-los, dizendo-lhes sem dizer: agora é “à minha maneira” (a música dos Xutos, que adotara como hino, na adolescência). Preso à obrigação (não dita) de cumprir (os sonhos que sonharam para si), de fazer (como achavam que devia fazer), ia-se sentindo, cada vez menos capaz de ser “à sua maneira” (por mais que ouvisse a música em repeat).
  Sempre o assombrou a possibilidade da falha. Como se nunca soubesse muito bem com quem contar na hora de metabolizar a dor que ela provoca. Como se nunca soubesse muito bem se teria o que é preciso para se reerguer depois dela. Fora assim na Faculdade, quando as ótimas notas não o serenavam mais do que uns minutos após a publicação das pautas. Era assim, agora, anos depois de ter trocado o piercing pelo fato escuro. Continuava, apesar do currículo de peso, a sentir-se o mesmo menino assustado com a ideia da falha perante os pais, a professora, a catequista... ou, agora, o chefe. À mínima contrariedade (natural e inevitável) num qualquer projeto que tinha em mãos e todo ele era inquietação. Como se daí só pudesse resultar um tremendo puxão de orelhas do chefe e, no limite, o despedimento. Que vergonha! Como é que iria explicar aos pais, à mulher ou aos tios que não tivera andamento para uma empresa tão bem cotada?! Dominado pelo medo, encolhia a sua criatividade, e nunca por nunca ousava chamar a atenção do chefe para ideias alternativas. Numa espécie de dejá vu do que se passava na sua infância, na relação com os pais, a professora ou a catequista, esclarece o Manuel, num movimento dorido, mas honesto. Sentia-se encurralado na ausência de alternativas, numa espécie de: ou faço absolutamente tudo o que o esperam de mim ou morro de medo de me sentir rejeitado, ou pior, perdido. Para onde vou se não tenho quem escolha o caminho por mim?
  Corrói (por dentro) esta ideia de não se poder discordar de quem manda... ou pior, de quem se gosta! Tudo parecia passar-se como se o Manuel quisesse (mas não soubesse, ainda, se pode) ousar uma “revolução tranquila” que, mandando ao alto o essencial do que o oprime, lhe permita conquistar a liberdade de construir alternativas! Deste ponto de vista, talvez não haja democratização da vida mental (nem as alternativas que desbrava) sem conflito. Nem autonomia sem a fé nos vínculos (como lhe chamou Bion), que permita acreditar que o seu lugar, no outro (significativo), é tão inabalavelmente seguro, que já pode ousar desejar/sonhar/fazer à sua maneira! A ser assim, exigir a quem se gosta (ou a quem está numa posição de autoridade, por exemplo) espaço para a subjetividade e a diferença, não andará longe de ser uma espécie de: já posso ser diferente de ti e lutar por quem quero ser! E quero (muito!) que gostes de mim assim! O Manuel viria a dizê-lo naquilo que me pareceu uma formulação muito clara, honesta e corajosa: O que eu quero desta vez não é um piercing para chocar e depois voltar tudo ao mesmo! Eu quero poder descobrir para onde quero ir sem morrer de medo de me perder (... ou sentir rejeitado).

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal. 

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