domingo, 15 de janeiro de 2017

Inveja, gratidão* e outros abraços!

  Todos esperavam que seguisse Medicina. O percurso brilhante no Secundário permitia-o. A tradição familiar deixava-o antever. O pai, homem arejado e afável, sempre lhe disse que devia seguir o que o fizesse feliz. Ainda assim, não deixava, de quando em quando, de lhe enviar para o e-mail uns artigos de Harvard, não fosse o Miguel esquecer-se que cresceu numa família com pergaminhos na Medicina. Talvez por isso o 12º ano tenha sido tão difícil para ele. Não tanto pela pressão da média, mas mais por se sentir dividido entre a paixão pela Economia e o que sentia ser uma espécie de obrigação implícita de receber do pai o estetoscópio que, por sua vez, tinha herdado do avô. Cheio de dúvidas e angústias, num sopro de vida, agarrou a Economia com unhas e dentes! Afinal de contas (como lhe dizia o avô vezes sem conta): “nunca podemos deixar fugir uma paixão!”
  Poucos meses depois de terminar o Curso, abre-se-lhe, agora, a janela de oportunidade que tanto queria agarrar: a possibilidade de um doutoramento em Inglaterra, com um economista inovador, que muito admirava. Teria, no entanto, de competir pela vaga com o seu melhor amigo da Faculdade! O amigo com quem partilhava discussões sobre macroeconomia e desigualdades sociais, mas também sonhos e inseguranças, histórias de amores e desamores. Com tanto de inteligente e arrebatado, como de medroso, continuava a ser difícil para o Miguel competir de igual para igual. Mais a mais com alguém de quem gosta com o coração cheio.
   A publicação dos resultados não enganava. O Miguel tinha conseguido a vaga. O seu grande amigo não tinha ido além de um honroso 2º lugar. Feliz com a conquista, mas receoso do impacto que poderia ter numa relação tão preciosa, apressou-se a marcar um jantar com o amigo. Diz-me, emocionado: “Sabe, acho que não foi muito diferente de quando escolhi o curso. Aí tinha medo de estar a “trair” o meu pai e o meu avô. Agora tinha medo de estar a “trair” o Bernardo. Mas sabe, quando o Bernardo chegou ao pé de mim, deu-me um grande abraço e disse-me: - meu sacana, estou com uma inveja tua! E aquilo que podia muito bem ter sido um momento fraturante na nossa amizade, aproximou-nos ainda mais. E eu ser-lhe-ei eternamente grato por isso. Por isso e por me ter mostrado, num passe de alquimia, como se pode fazer da inveja um sentimento que aproxima muito mais do que destrói! Por isso, e por me ter mostrado, de uma forma ainda mais clara que o meu pai ou o meu avô foram capazes de fazer, que eu tenho o direito (e o dever!) de lutar sempre (!) por uma paixão. De forma franca e leal, mas com unhas e dentes, à homem!”

   Talvez seja sempre um bocadinho assim. Talvez o que afaste as pessoas não seja tanto a natureza do que possam verdadeiramente sentir, mas mais a forma como o procuram esconder (do outro e de si), branqueando-o ou expressando-o, em bruto, de forma impulsiva e retorcida. Talvez o grande desafio seja mesmo pensar as emoções, vesti-las de palavras e histórias, comunicando-as com toda a clareza e afeto que formos capazes (naquilo a que Bion chamou função α). Nesta leitura, talvez as únicas emoções “negativas” (que afastam…) sejam as que ficam por pensar e comunicar, encontrando no agir impulsivo (violento e destrutivo, no limite) a única forma de expressão.

*Título inspirado no título do artigo: “Inveja e gratidão”, de Mélanie Klein (1957)

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

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