Ainda andava às
voltas com a ressaca do divórcio. Sem saber bem como, o mundo desabou. Assim,
de uma assentada (por mais que há muito as brechas se viessem a aprofundar). A
cama era, agora, grande demais para tanto vazio. Só o Bernardo, nos
fins-de-semana e 4ª feiras que ficava com o pai lhe conseguia arrancar um
sorriso rasgado. Muitos meses depois vieram, finalmente, as férias. E com elas
uma espécie de Verão teenager (como
lhe chamara). Na ressaca de uma vertigem de festas, exageros alcoólicos e relações
de ocasião, o Pedro estava, agora, mais metido consigo. Depois de um Verão de
mais “anestesia” do que de “reconstrução”, era tempo de ligar os pensamentos.
A Joana, com a vivacidade, a audácia e o medo de quem trata a vida por
tu, insistiu em pôr-se no seu caminho. O Pedro hesitou. E voltou a hesitar. Uma
e outra e outra vez. Intuía que não poderia passar por aquele brilho nos olhos
com a leviandade com que passara pelo Verão. E isso fascinava-o. Fascinava-o, mas
assustava-o de morte. Ainda estavam bem vivas as feridas do divórcio. E, feitas
as contas, gato escaldado até de água fria tem medo. Incrível, a Joana,
cerrou fileiras e não desarmou. E isso foi serenando o Pedro. “Meu Deus, nunca
tinha visto uma mulher a olhar para mim daquela maneira. Era um olhar de
espanto. Um olhar de espanto perante o amor”. Com a Joana tinha, agora, uma “sintonia
maior” (como lhe chamara) que, na verdade, nunca chegara a ter com a Marta em 5
anos de casamento. E tinham sonhos, feitos projetos comuns. Mas veio a crise, a troika e a deslocalização de pessoal do departamento financeiro para a sucursal
de Paris. E vieram as pontes aéreas e os sonhos feitos projetos para um
reencontro a curto prazo. Agora sim, a história tinha os contornos de um amor
épico, à filme! Os reencontros eram apaixonados, mas a distância crescentemente
insuportável para a Joana. De volta à Paris que a viu crescer, foi desistindo,
aos poucos, do “espanto do amor”. Sem nunca conseguir ser clara, manteve um
registo: “nem contigo, nem sem ti” muito para lá do razoável. O Pedro cerrou
fileiras e não desarmou… mas o amor é sempre a dois (a multiplicar por cada uma
das vidas que mora bem dentro de cada um dos amantes) e virar o mundo do avesso
não foi suficiente para resgatar, na Joana, aquele olhar de espanto perante o
amor. Com uma última carta de amor, o Pedro empurrou, finalmente, a porta que
a Joana teimava em não abrir (nem fechar). Estava zangado com as mulheres e com
o amor. Pensava, para si, que era hora de dar um tempo ao amor e de apostar as
fichas todas no trabalho. Mas, fosse quando se sentava para retomar os sites
que tinha em carteira ou quando, à noite, a cama lhe parecia demasiado grande
para tanto vazio, batia a saudade. E uma tristeza funda. E a desconfiança no seu valor: “Se
eu sou tão especial como me imagino, porque é que, chegada a hora da verdade,
fico invariavelmente sozinho?”. E a culpa por um lado intempestivo, que sempre
o atormentou: “a verdade é que, às vezes, consigo ser uma besta”. E o medo. O
medo de nunca mais se sintonizar com ninguém da forma mágica como, em tempos,
se sintonizara com a Joana. E o temor de, na improbabilidade de se voltar a
sintonizar, o Amor ter, uma vez mais, prazo de validade.
Sempre com um sentimento de perda como pano de fundo, o Bernardo e o gozo
que o trabalho lhe dava iam-lhe preenchendo a vida. Até que, sem saber bem como,
choca de frente com os olhos brilhantes da Maria. Radiante e apavorado ao perceber
que, afinal, o coração ainda bate, lança-se numa sofreguidão urgente, própria de
quem morre de medo e de esperança, tudo ao mesmo tempo. A Maria, mulher
sensata, incandesce-se, num primeiro momento. Mas trava a fundo, logo de
seguida. Há muito que a vida lhe ensinara que as fugas para a frente não
aproximam as pessoas. E irrita-se. Irrita-se solenemente: “como é que este tipo,
de olhar bonito e profundo, estraga assim tudo antes mesmo de começar?” … Mas
volta a incandescer-se: afinal de contas, o sôfrego Pedro também é capaz de um
acesso de sensatez quando lhe metem o dedo no nariz! E vêm os cafés, os
jantares e as horas a fio ao telefone (só agora descobriram que aqueles pacotes
ilimitados de telecomunicações, afinal têm um número limitado de minutos!).
Tudo os parece ligar, como se se conhecessem desde sempre! Cresce o entusiasmo
e o espanto. Mas com eles segue, também, o medo. Afinal de contas, lado a lado com
o saber de experiência feito, moram, bem dentro de cada um deles, cicatrizes
várias que a proximidade vem desnudar. À boleia duma dessas cicatrizes, quando nada o fazia prever, o Pedro tem um verdadeiro acesso de mau feitio,
daqueles tão seus. A Maria, atónita, grita-lhe: “tu não me falas assim!” Nesse
exato momento, o Pedro cai em si, pede desculpa e tenta, por todos os meios,
reparar os estragos. Mas aquele casal, que até há poucas horas incandescia na
ilusão de que se conhecia desde sempre estava, agora, a milhas de distância! A
Maria estava muito assustada. O poço de charme, afeto e firmeza que via no Pedro
parecia-lhe, agora, uma reedição (de muito má qualidade) de todas as pessoas
por quem se foi sentindo mais ou menos amesquinhada. O Pedro, dividido entre a
culpa e a ideia difusa de que também a Maria não entendia que os acessos de mau
feitio mais não eram do que um mix de medo e desamparo em versão show off, não
encontrava a fórmula mágica para se chegar a ela. Mas, muitas lágrimas, linhas
vermelhas e inconfidências depois, lá se agarraram num abraço sem fim. Meses (e
alguns encontros e desencontros)
depois, numa daquelas tardes ternurentas de sofá, a Maria olha bem dentro do Pedro
e diz-lhe: “tu és um falso bruto!”. Ele olha-a, desconcertado, e ela insiste: “sim,
tu és um falso bruto! Berras e tal, mas se eu te meto o dedo no nariz, cais
logo em ti! És um falso bruto! É só show off, para pedir mimo!” E comovem-se os
dois, num abraço do tamanho do mundo! Talvez nunca o Pedro tenha ouvido (numa
formulação tão simples) nada tão integrador (e poderoso a serenar cicatrizes)!
Talvez seja sempre um bocadinho assim. Talvez o Amor definhe um bocadinho
de cada vez que nos deixamos ofuscar com a superfície plana dos show off. Mas,
talvez se expanda (vários universos!), de cada vez que insistimos em olhar o outro… para lá das luzes!
Nota: Atendendo ao profundo
respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas
histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo,
nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do
blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias
reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.
Bonito e muito bem escrito. Gostei principalmente desta passagem "O Pedro, dividido entre a culpa e a ideia difusa de que também a Maria não entendia que os acessos de mau feitio mais não eram do que um mix de medo e desamparo em versão show off, não encontrava a fórmula mágica para se chegar a ela." Obrigada
ResponderEliminarMuito obrigado, mj!
Eliminar