domingo, 8 de dezembro de 2019

Dos silêncios que (des)ligam.


  Há silêncios que aproximam. De tão quietos, permitem que vamos brincando com os nossos pensamentos, lado a lado com o outro, numa espécie de silêncio-criatividade. Melhor ainda, há silêncios que dão banda sonora a olhares que, de tão dentro que olham, se escutam e entrelaçam (para lá das palavras). Serão assim uma espécie de silêncios-abraço. Mas era, principalmente, dos silêncios-ruído de que me falava a Sara. Daqueles que, de tão ausentes, cavam fossos na relação. Daqueles que, de tão hostis, parecem ter tantos picos quantos os de um ouriço-cacheiro assustado.
   Aquele que era suposto ser um fim-de-semana romântico não começara da melhor forma. O Bernardo conduzia, de rosto cerrado. As poucas palavras que lhe saíam eram impropérios para o trânsito ou as manobras de outros condutores. Irritada, a Sara respirou fundo e tentou amenizar o ambiente o melhor que conseguiu, lembrando ao Bernardo que já estavam em plena escapadinha a dois, e que, portanto, não era suposto estar irritado. O Bernardo suspirou fundo e soltou um: eu não estou irritado. Continuaram estrada fora: a Sara furiosamente a fazer scroll no telemóvel (como se estivesse, realmente, interessada numa publicação que fosse), o Bernardo a saltitar, sem parar, entre estações de rádio (como se ouvisse, realmente, uma que fosse). Cada um mergulhado em mil e uma pequenas grandes mágoas. Cada um a falar delas num registo mais encriptado do que o mais diferenciado dos Serviços Secretos: por meio de um silêncio ensurdecedor, entrecortado, de quando em quando, por palavras zangadas sobre o estado da estrada, a condução brusca, ou o estado do tempo. Cada um na expectativa de que o outro descodificasse e legendasse a mensagem, aguentasse os chega para lá, voltasse a descodificar e a legendar a mensagem, voltasse a aguentar os chega para lá e, finalmente, pusesse tudo no lugar com um abraço apertado.

   Talvez seja sempre um bocadinho assim quando as pequenas e grandes mágoas se vão acotovelando por debaixo do tapete. Talvez não haja muito como desculpá-las verdadeiramente à margem das palavras que as legendem, das histórias que as integrem e dos gestos que as reparem. A ser assim, desbravar o espaço relacional que permita falar-se do que se sente, de forma tão transparente quanto se é capaz, talvez seja, de facto, o mais eficiente dos sistemas de tratamento de ruídos tóxicos. A ser assim, desbravar o espaço relacional que permita falar-se do que se sente, de forma tão transparente quanto se é capaz, talvez seja, de facto, a forma mais efetiva de abrir espaço para os silêncios que ligam.

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.  

6 comentários:

  1. Às vezes, (muitas) não temos tapetes. Temos carpetes gigantes.

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    1. Acho que sim, Manuela Cunha! Valha a capacidade humana de desbravar espaços relacionais capazes de levantar carpetes e "reciclar" pós e ruídos.

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  2. A solidao acompanhada é do pior que há!!

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    1. Muito obrigado pelo seu comentário! Seja muito bem-vindo/vinda a este espaço.

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